quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

A HISTÓRICA VIA MÉDIA: AS FRONTEIRAS DA IDENTIDADE ANGLICANA

Cheryl H. White, Ph.D([i])


Parece haver um interesse renovado na Via Média, que tem sido crescentemente invocada na retórica dos revisionistas da Igreja Anglicana. Ao aplicar esse termo a ações que podem ser descritas como não-ortodoxas, essas pessoas estão ignorando a própria História a quem elss dizem tão bem conhecer. A implicação dessa retórica recente é que a verdade de uma geração deve ser entendida de modo diferente na próxima, e que nós devemos estar abertos para receber a tudo e a todos, mutuamente. O desenvolvimento histórico de um “caminho médio” dentro da identidade anglicana sempre teve limites definidos e fronteiras claramente delineadas. O uso adequado do termo requer uma lição da História, que tem a sua origem com a rainha Elizabeth I, no século XVI.



A ruptura com Roma, que ocorreu na Inglaterra de Henrique VIII, não representou um episódio completo ou final. Após a sua morte, nos reinados dos seus filhos Eduardo VI e Maria II, a situação era de caóticos extremismos, que requeriam o estabelecimento de um compromisso abrangente para todos os súditos. Esse era o terreno fértil para a semeadura de uma Via Média da Igreja primitiva, ou seja, buscavam elementos de unidade, universalidade e inclusividade.



Fazendo frente a esse dilema de grandes proporções, Elizabeth procurou conter os extremos da população, construindo uma base que dissesse respeito aos princípios da moral coletiva, da unidade da nação, e da legitimidade do regime. Havia a necessidade de uma estrutura que garantisse a estabilidade política e a verdadeira unidade religiosa para a maioria do povo. A Igreja Elizabetana na Inglaterra deveria, por definição, ser historicamente católica, evidenciada pela abordagem religiosa ampla e inclusiva, conforme entendida pela rainha. Ninguém naquela época questionava que a Igreja Apostólica e as Sagradas Escrituras eram os verdadeiros guias para a catolicidade. Particularmente, a rainha foi influenciada pelo exemplo de Santo Atanásio.



Lembramos que Atanásio, um bispo egípcio do quarto século, foi um pioneiro campeão da ortodoxia. Ele firmemente apoiava a fé formalizada pelo Concílio de Nicéia, em 325, no que ficou conhecido como o “Credo Niceno”. Atanásio encorajava as fronteiras essenciais, para uma verdade ampla entre os crentes. De acordo com Atanásio, era precisamente dentro da Tradição, que os cristãos, como indivíduos, poderiam encontrar seu caminho pessoal para conhecer a Cristo. Tanto quanto a diversidade era uma característica da Igreja universal, para Atanásio, o Credo era um marco para os fiéis, algo que demarcava as fronteiras necessárias. Há, assim, um paralelo entre a Era Patrística e a Era Elizabetana na compreensão da diversidade com limites.



Atanásio é lembrado por enfrentar uma das piores heresias da Igreja, aquela defendida por Ário de Alexandria, conhecida como Arianismo, que negava a verdadeira divindade de Cristo, que o Filho, homem, não partilhava da mesma divindade de Deus, o Pai. Foi a questão da Santíssima Trindade a principal razão para a convocação do Concílio de Nicéia pelo imperador Constantino. A nova fé do Império necessitava de disciplina, e a tarefa do Concílio era redigir um Credo inclusivo. O historiador Eusébio de Cesárea afirma que a principal preocupação de Constantino era a de manter e preservar a fé do seu império. Algo semelhante ao momento vivido por Elizabeth I.



Em Nicéia, os escritos de Atanásio foram usados para apoiar a verdadeira divindade de Cristo. Se Cristo era o Salvador, arrazoava Atanásio, Ele não poderia ser menos Deus do que Deus, pois somente Deus poderia restaurar a comunhão da humanidade consigo mesmo. O que se seguiu, na verdade, foi a fixação de uma declaração fundamental para a crença cristã, referente à natureza de que todos os cristãos compartilham a catolicidade da Igreja. O Império Romano necessitava fixar fronteiras para os fiéis, a fim de evitar um dissenso religioso que pudesse ameaçar sua própria sobrevivência. Atanásio seguiu a lógica e o arrazoado que evitou uma grande fragmentação na Cristandade do quarto século. Elizabeth enfrentava um desafio semelhante, e empregou, em menor escala, a mesma abordagem.



O Catolicismo Inglês Reformado emergiu “atanasiamente”, com Elizabeth estabelecendo marcos espirituais firmemente ancorados, enquanto se dirigia, compreensivelmente, à diversidade que era uma característica do seu tempo. A sua Igreja da Inglaterra era ligada à Igreja Universal pela autoridade das Sagradas Escrituras, da doutrina tradicional, pelos Sacramentos, e pela preservação da liturgia histórica. Elizabeth estava convencida que o seu “caminho do meio” era uma promessa melhor para a inclusividade e a unidade, do que os exemplos de extremismo das décadas anteriores. Ela estava determinada a evitar o domínio de extremismos clericais. Ouvindo a todos, menos os dois extremos das pontas, a Igreja da Inglaterra, sob Elizabeth I, tornou-se mais inclusiva e universal, ou seja, por definição, mais católicas.



O “caminho do meio” abriu uma larga estrada no século XVI, mas seria incompletamente definido sem as limitações das Sagradas Escrituras, dos Credos, e da reverência para com a História. Por ancorar sinais para os seus súditos, Elizabeth os pretendia duradouros. Sir Nicolas Bacon afirmou que o estabelecimento religioso da rainha deveria durar, e que a rainha tinha pouca paciência com “aqueles que ameaçam ir além da Lei, ou aquém dela” (Hartley, 1981). Posteriormente (em janeiro de 1580), Elizabeth enviou uma firme exortação à Câmara dos Comuns, que eles não deveriam “se haver com matérias referentes à Pessoa ou Propriedades de Sua Majestade, nem tocar em assuntos de religião” (D’Ewes, 1682).



A Via Média nunca foi tão ampla que incluísse heresias de qualquer natureza. O “caminho do meio” nunca implicou que as Sagradas Escrituras ou a Tradição pudessem ser ignoradas pelo bem da diversidade e da inclusão. O ensino tradicional da Igreja histórica estava cimentado firmemente na Via Média de Elizabeth I, e, para os anglicanos ortodoxos de hoje, continua a ser uma pedra fundamental da identidade anglicana. Invocar a grande tradição da Via Média para justificar o pecado é uma grave injustiça à dignidade e à integridade de um dos mais brilhantes e compreensivos estabelecimentos de unidade que a Igreja Cristã jamais conheceu.



Elizabeth I procurou incluir a maioria dos seus súditos em uma unidade religiosa inclusiva, entendendo que os extremos deveriam ser contidos. No meio, contudo, estava a maioria dos cristãos que reconheciam as fronteiras da Tradição histórica e das Sagradas Escrituras. O moderno argumento focalizado no estado da Igreja de hoje sempre se reporta a essa base – há muitos entre nós que não podem aceitar a prática não-reconhecida, não-culpada e não-arrependida, de pecados como uma outra manifestação desse Anglicanismo inclusivo. Se os anglicanos modernos estão verdadeiramente preocupados com um renovado compromisso com a Via Média, por que não manter a fronteira estrita que exclui o pecado, insistindo nos seus limites originais – a autoridade das Sagradas Escrituras?

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[i] Cheryl H. White é professor de História na Universidade do Estado de Luisiana, membro da Junta Paroquial da Paróquia São Paulo, especialista em História da Igreja e Estados da Reforma, autora da tese de Doutorado: “O Conflito pela Catolicidade na Igreja da Inglaterra dos Tudor”.